Juízes e desembargadores federais
assinaram uma carta aberta em apoio a criação do “juiz das garantias”. O texto
afirma que a nova normativa representa “um passo decisivo para a superação do
processo penal inquisitivo, onde a figura do juiz se confunde com a do
investigador/acusador, indo ao encontro do modelo acusatório consagrado na
Constituição da República (artigos 129, I e 144)”.
Leia a carta na íntegra:
“A Lei n. 13.964/19 modificou o Código
de Processo Penal para, dentre outros pontos, introduzir no sistema de justiça
criminal brasileiro o “juiz das garantias”, cujas atribuições consistem em
controlar a “legalidade da investigação criminal” e garantir os “direitos
individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder
Judiciário” (art. 3º-B, CPP).
Sem entrar no mérito das demais
modificações operadas na legislação penal e processual penal brasileira pela
Lei n. 13.964/19, nós, juízas e juízes federais abaixo identificados,
manifestamos nosso apoio à adoção, no Brasil, do instituto do “juiz de
garantias”. Trata-se de figura indispensável à densificação da estrutura
acusatória de processo penal (imparcialidade do juiz e separação das funções
dos sujeitos processuais) e à concretização de direitos humanos.
Ao dispor sobre o “juiz de garantias”, a
nova lei estabelece uma hipótese de divisão da competência funcional do juízo e
de impedimento decorrente dessa divisão: a competência do “juiz das garantias”
finda ao ser recebida a denúncia ou queixa (art. 3º-A, CPP), de modo que, se
uma/um magistrada/o atuar na fase preliminar de investigação, não terá
competência funcional para jurisdicionar no processo, porquanto objetivamente
impedida/o de instruir e julgar as ações penais dela originada, sob pena de
nulidade de suas decisões[1] (art. 3º-D, CPP).
Eventuais dificuldades logísticas
decorrentes do afastamento do juiz das garantias/juiz da instrução e julgamento
da sede do juízo onde tramita o inquérito/ação penal podem ser resolvidas com
regras de distribuição dos feitos entre juízas/es com competência criminal a
serem editadas pelos tribunais e com recursos tecnológicos do processo
eletrônico, que tornam cada vez mais realizável a ideia de “núcleos regionais
das garantias”[2] criados a partir de critérios prévios, impessoais e
objetivos. Mesmo em uma vara única em que atuem dois juízes, por exemplo, basta
determinar que, no processo em que um deles atue como juiz de garantias, o
outro jurisdicione como juiz de processo e vice versa. Não há órgão novo. Não
há nova instância. Há divisão funcional de competência.
Afigura-se a novidade como um passo
decisivo para a superação do processo penal inquisitivo, onde a figura do juiz
se confunde com a do investigador/acusador, indo ao encontro do modelo
acusatório consagrado na Constituição da República (arts. 129, I e 144). Com o
“juiz de garantias”, aprofundamos a estrutura acusatória do sistema de justiça
criminal, impedindo a indevida e indesejável cumulação das funções de garantia
e as de julgamento, pois a/o juiz/juíza que decide sobre (ausência de) culpa
não participa da investigação criminal, não produz prova por iniciativa própria
e tampouco fundamenta condenação com elementos de convicção obtidos sem
contraditório judicial. Com o novo regramento, cabe à juíza/ao juiz de julgamento
conhecer apenas os atos de prova produzidos em contraditório, e não mais os
atos de investigação conduzidos pela/o juíza/juiz das garantias, que permanecem
acautelados em juízo distinto, sempre com acesso às partes (art. 3º-B, §§ 3º e
4º, CPP). Na figura do “juiz das garantias”, cria-se “circunstância que
objetivamente afastará o magistrado da fantasmagórica suspeita de
acusador/investigador, tão rechaçada pelos instrumentos internacionais de
direitos humanos”[3].
Além disso, a nova divisão funcional de
competências atua no sentido da preservação da imparcialidade do juiz de
julgamento, aprimoramento há tempos exigido não só por nossa Constituição da
República desde 1988 como, também, pelas disposições normativas e
jurisprudenciais do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, razão pela qual
grande parte dos países da América Latina já introduziram a figura do “juiz das
garantias” em seus sistemas de justiça criminal.
A criação do “juiz de garantias”
representa a qualificação da garantia do juiz imparcial tal como compreendida
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ao interpretar o artigo 8.1 da
Convenção Americana de Direitos Humanos, a exemplo dos casos Castillo Peruzzi,
Durand e Ugarte, Cantoral Benavides, todos versus Peru, bem como no Caso Tibi
versus Equador, nos quais a Corte concluiu ser imprescindível a “separação de
funções entre o juiz da fase da investigação e o do processo, sob pena de
violar-se a imparcialidade do julgador.”[4]
No caso Castillo Peruzzi versus Peru, a
CorteIDH concluiu ter havido violação à garantia do juiz imparcial ao detectar
“coincidência entre as funções de luta antiterrorista das Forças Armadas e o
desempenho jurisdicional” por parte dos “tribunais militares, que seriam ao
mesmo tempo parte e juiz nos processos. Para a CorteIDH, se o mesmo juiz que
instrui a investigação exerce as funções de julgamento, a garantia do
jurisdicionado a um juiz imparcial estará violada.” No caso Durand e Ugarte, a
CorteIDH entendeu que “a justiça militar peruana tanto foi a encarregada pela
investigação quanto pelo processamento dos militares envolvidos”, havendo,
portanto, “grave violação à garantia processual do juiz imparcial.” Por fim, no
caso Cantoral Benavides versus Peru, a CorteIDH manteve o entendimento firmado
nos casos anteriores, concluindo que o acúmulo das funções de conduzir
investigações e instruir/julgar processos penais aniquila a garantia de um juiz
imparcial, o que se apresenta “totalmente dissonante com o sistema acusatório,
para o qual a garantia da imparcialidade é alicerce.”[5]
Defendemos que a melhor justiça criminal
será prestada por uma magistratura que recusa a renitência persecutória de
Javert e também o arbitrário aprisionamento das diferenças pelo Alienista.
Repudiamos o papel de juiz que se mostra “de braços dados com a acusação, em
uma cruzada pelo clamor público e pelos valores morais e absorvendo todo o
discurso moralista do senso comum”. Trata-se de um erro que se torna “maior
ainda quando Deus invade o Estado laico e conclama a todos para a cruzada metafísica
contra um inimigo etéreo.” A ideia de um juiz combatente “nos faz abandonar a
construção moderna de um Poder Judiciário independente, imparcial e afirmativo
dos direitos fundamentais.”[6]
Juramos cumprir e fazer cumprir a
Constituição, garantindo as liberdades públicas e concretizando direitos mesmo
que – ou especialmente quando – as maiorias de ocasião, sejam as das ruas ou as
dos gabinetes, possam com seu ódio aniquilar as minorias políticas. Não seremos
nós os Porteiros da Lei.”
Assinam o documento:
Ana Inés Algorta Latorre, Juíza Federal, SJRS/ TRF4
Antônio Lúcio Túlio de Oliveira Barbosa, Juiz Federal, SJBA/TRF1
Antônio José de Carvalho Araújo, Juiz Federal, SJAL/TRF5
Augustino Lima Chaves, SJCE/TRF5
Célia Regina Ody Bernardes, Juíza Federal, SSJ Teixeira de Freitas/TRF1
Celso Kipper, Desembargador Federal/TRF4
Claudia Maria Dadico, Juíza Federal, SJSC/TRF4
Cláudio Henrique Fonseca de Pina, Juiz Federal, SJPA/TRF1
David Wilson de Abreu Pardo, Juiz Federal, SJDF/TRF1
Diego Carmo de Sousa, Juiz Federal, SJBA/TRF1
Edevaldo Medeiros, Juiz Federal, SJSP/TRF3.
Edvaldo Mendes da Silva, Juiz Federal, SJSC/TRF4
Eduardo Pereira da Silva, Juiz Federal, SJGO/TRF1
Fábio Fiorenza, Juiz Federal, SJMT/TRF1
Felipe Mota Pimentel de Oliveira, Juiz Federal, SJPE/TRF5
Filipe Aquino Pessôa de Oliveira, Juiz Federal, SSJ Guanambi/TRF1
Flávio Antônio da Cruz, Juiz Federal, SJPR/TRF4
Francisco Donizete Gomes, Juiz Federal, SJRS/TRF4
Gabriela Azevedo Campos Sales, Juíza Federal, SJSP/TRF3
Gilton Batista Brito, Juiz Federal, JFSE/TRF5
Grace Anny de Souza Monteiro, Juíza Federal, SJRO/TRF1
Isaura Cristina de Oliveira Leite, Juíza Federal, SJDF/TRF1
Jacques de Queiroz Ferreira, Juiz Federal, SJMG/TRF1
Jorge Maurique, Desembargador Federal/TRF4
José Carlos Garcia, Juiz Federal, SJRJ/TRF2
José Henrique Guaracy Rabelo, Juiz Federal Emérito, SJMG/TRF1
Lincoln Pinheiro Costa, Juiz Federal, SJBA/TRF1
Luciana Bauer, Juíza Federal, SJPR/TRF4
Luís Praxedes Vieira da Silva, Juiz Federal, SJCE/TRF5
Luiz Fernando Wowk Penteado, Desembargador Federal/TRF4
Marcelo Eduardo Rossitto Bassetto, Juiz Federal, SSJ São Sebastião do
Paraíso/TRF1
Marcello Enes Figueira, Juiz Federal, SJRJ/TRF2
Marcelo Elias Vieira, Juiz Federal, SJRO/TRF1
Marcos Antonio Garapa de Carvalho, Juiz Federal, SJSE/TRF5
Marcus Vinícius Reis Bastos, Juiz Federal, SJDF/TRF1
Ney Bello, Desembargador Federal/TRF1
Paulo Roberto Parca de Pinho, Juiz Federal, SJPE/TRF5
Pedro Pimenta Bossi, Juiz Federal, SJPR/TRF4
Polyana Falcão Brito, Juíza Federal, SJPE/TRF5
Ricardo José Brito Bastos Aguiar de Arruda, Juiz Federal, SJCE/TRF5
Ricardo César Mandarino Barretto, Juiz Federal Emérito, SJPE/TRF5
Rodrigo Gaspar de Mello, Juiz Federal, SJRJ/TRF2
Rogério Favreto, Desembargador Federal/TRF4
Roger Raupp Rios, Desembargador Federal/TRF4
Rosmar Antonni Rodrigues Cavalcanti de Alencar, Juiz Federal, SJAL/TRF5
Simone Schreiber, Desembargadora Federal/TRF2
Thalynni Maria de Lavor Passos, Juíza Federal, SJPE/TRF1
Vanessa Curti Perenha Gasques, Juíza Federal, SJMT/TRF1
Victor Curado Silva Pereira, Juiz Federal, SSJ de Balsas/TRF1
Victor Roberto Correa de Souza, Juiz Federal, SJRJ/TRF2
(Revista Conjur)
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