"Folha - A sra. ficou surpresa com a pena aplicada?
Ana Lúcia Assad - Fiquei. Fiquei muito surpresa porque a pena foi totalmente desproporcional. Não foi dada a oportunidade ao conselho de sentença, aos jurados, de decidir sobre a possibilidade do crime continuado, que é uma atenuante, como prevê a lei. Se ela [juíza] tivesse acatado nossa argumentação, de crime continuado, a pena teria sido de 50 a 55 anos, que nos parece muito mais real (…)”.
Ana Lúcia Assad - Fiquei. Fiquei muito surpresa porque a pena foi totalmente desproporcional. Não foi dada a oportunidade ao conselho de sentença, aos jurados, de decidir sobre a possibilidade do crime continuado, que é uma atenuante, como prevê a lei. Se ela [juíza] tivesse acatado nossa argumentação, de crime continuado, a pena teria sido de 50 a 55 anos, que nos parece muito mais real (…)”.
Há vários erros aqui que são importantes de entendermos:
O crime continuado não é uma atenuante. As atenuantes, para o direito brasileiro são ser menor de 21 anos quando cometer o crime ou maior de 70 anos quando for sentenciado, desconhecer a lei, ter cometido o crime por relevante valor social ou moral, ter procurado evitar ou amenizar as consequências do crime, ter cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção provocada por ato injusto da vítima; confessado espontaneamente a autoria do crime, ou ter cometido o crime sob a influência de multidão em tumulto (se não o provocou). Ao contrário do que a advogada afirmou, o crime continuado não entra nessa lista.
Mas o que é o crime continuado e porque ele poderia, no caso acima, ter aumentado a pena total?
Por exemplo, se o empregado responsável pelo caixa do restaurante todo dia se apropria do dinheiro da empresa, ele está cometendo um crime diferente todo dia. Mas como esses crimes são cometidos em condições de tempo, lugar e maneira que levam a crer que um é apenas a continuação do outro, o criminoso acaba sendo condenado apenas por um único crime, mas a pena desse crime é aumentada.
E de quanto é esse aumento? Depende. E é aí que entra o segundo erro da advogada.
Há duas espécies de crimes continuados: os comuns (art. 71 do Código Penal) e os específicos (o parágrafo único daquele artigo).
Os comuns são aqueles que não envolvem violência ou grave ameaça. Nesse caso, a pena aplicada ao crime mais grave aumenta entre 1/6 e 2/3. Por exemplo, se o crime mais grave era a apropriação indébita cometido pelo garçom do exemplo acima (cuja pena máxima é de até 4 anos), a pena máxima que ele receberia seria de 6 anos e 8 meses (4 anos + 2/3 de 4 anos). Mas essa é a pena máxima possível. O cálculo é feito com base na pena realmente aplicada naquele crime (essa informação vai ser importante logo abaixo).
Já os crimes continuados específicos são aqueles que envolvem violência ou grave ameaça. Nesse caso, a pena pode triplicar.
Bem, na matéria acima a pessoa foi acusada dos seguintes crimes:
1 homicídio qualificado (pena máxima de 30 anos)
2 tentativas de homicídio qualificado (pena máxima de 20 anos)
5 cárceres privados (pena máxima 8 anos)
4 disparos de arma de foto (pena máxima de 4 anos).
Todos eles são crimes envolvendo violência contra a pessoa. Logo, todos eles entram no grupo dos que podem ser triplicados. Mas, exceto o homicídio e a duas tentativas de homicídio, os outros são de espécies diferentes.
Logo, se aplicarmos a regra do triplo a cada um deles, temos:
Homicídio + tentativas: 30 x 3 = 90 anos
Cárcere privado: 8 x 3 = 24 anos
Disparos de arma de fogo: 4 x 3 = 12 anos
Se somarmos 90 + 24 + 12 = 126 anos. Mas isso não quer dizer que ele seria condenado a tudo isso. Como vimos, os aumentos incidem sobre a pena de fato aplicada.
E dá para saber quais as penas que seriam de fato aplicadas se houvesse crime continuado? Não. Mas, olhando a tabela abaixo, dá para termos uma boa ideia baseado nas penas que foram aplicadas na sentença. Por exemplo, sabemos que a pena máxima foi aplicada ao homicídio qualificado, que 92% da pena máxima possível foi aplicada às tentativas, 60% da pena máxima possível foi aplicada aos cárceres privados, e 75% da pena máxima possível no caso dos disparos das armas de fogo.
Se aplicarmos esse percentuais às penas máximas possíveis que calculamos acima, teríamos:
Homicídio + tentativas: 82 anos e 9 meses (92% de 90 anos)
+ Cárceres privados: 14 anos e 5 meses (60% de 24 anos)
+ Disparos de armas de fogo: 9 anos (75% de 12 anos)
= Total: 106 e 2 meses.
Em outras palavras, a tese dos crimes continuados faria com que a pena aumentasse em vez de diminuir.
E é por isso que os juristas criaram um outro conceito, chamado concurso material benéfico: se, ao aplicarmos as regras do crime continuado (que vimos acima), a pena final for maior do que se considerarmos cada crime separadamente (chamado 'concurso material'), aplicamos essa última. Ou seja, no caso da matéria acima, a pena continuaria 98 anos e 10 meses.
(Fonte: para entender Direito)
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