Em agosto de 2014, um
velho torturador resolveu falar. E a sua revelação foi mais que impactante. O
que ele "abriu" foi mais que uma confissão de culpa, foi a
ratificação do tipo de crime que era cometido ao longo da ditadura militar que
durou 21 anos e fez do Brasil um país com uma chaga enorme e até agora não
curada. Os militares que estavam no poder e que levavam às últimas
consequências aquela guerra ideológica insana e sangrenta não eram apenas
genocidas assassinos. Eles cometeram crime contra a humanidade.
Pelo depoimento do velho torturador, o policial Cláudio Guerra,
dava-se uma baixa de 12 nomes na lista dos presos políticos desaparecidos
durante o regime militar. Ex-delegado de Polícia Civil do Espírito Santo,
Guerra falava com autoridade. Ele também era ex-agentes do Serviço Nacional de Informações,
o famigerado SNI, e foi autor de um dos atos mais bárbaros da ditadura: 12
corpos de presos políticos executados nos porões da repressão foram atirados
nas fornalhas da Usina de Açúcar Cambaíba, em Campos, no Norte Fluminense.
O pernambucano Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira era um
desses presos cujos corpos acabaram carbonizados. Ele e o conterrâneo Eduardo
Collier Filho. Os dois foram presos no sábado de carnaval de 1973, numa esquina
de Copacabana, no Rio de Janeiro, local onde se encontraram para "cobrir
um ponto" marcado pela Ação Popular Marxista-Leninista, a APML, da qual
faziam parte.
A revelação feita pelo ex-torturador Guerra era a primeira
notícia que as famílias teriam dos dois jovens estudantes, desde o sumiço
deles. Foram 41 anos de silêncio absoluto, de negativas de informações, de
drama para as famílias.
A saga da família Santa Cruz virou livro – "Onde Está Meu
Filho?" (Chico de Assis, Cristina Tavares, Gilvandro Filho, Glória
Brandão, Jodeval Duarte e Nagib Jorge Neto, Ed. Cepe) – hoje em sua segunda
edição. Mais que um apelo, o título é uma denúncia contundente feita pela mãe
de Fernando, Elzita, que os amigos chamam carinhosamente de Dona Zita. Uma
guerreira na maior dimensão que o termo pode ter. Uma heroína brasileira.
Dona Zita nunca se intimidou, mesmo diante de toda a sorte de
ameaça e de desrespeito. Bateu às portas dos quarteis, foi atrás de autoridades
em Brasília, cobrou informações nas delegacias, abriu a boca na imprensa.
Contou com a ajuda de muitas personalidades da política, da Igreja Católica, da
intelectualidade, do meio jurídico. Marcharam com ela nessa luta por notícias
do paradeiro de Fernando nomes como Ulysses Guimarães, Marcos Freire, Paulo
Brossard, Fernando Lyra, Jarbas Vasconcelos, Dom Helder Câmara, Dom Paulo
Evaristo Arns, Sobral Pinto, JG de Araújo Jorge. Até mesmo uma figura do regime
militar, o Marechal Juarez Távora, tentou intervir e obter informação, sem
sucesso.
A incineração dos corpos na Usina Cambaíba trouxe à baila,
finalmente, uma notícia na qual as famílias desses 12 presos políticos – até
então desaparecidos políticos – puderam, pelo menos, se apoiar para dizerem
"meu filho morreu". Enterrar os corpos, pelas circunstâncias brutais
do ato, impossível continuou a ser.
O relato do policial Cláudio Guerra deu uma dimensão do que os
torturadores e genocidas eram capazes de fazer, naqueles tempos sombrios e
sacramentados como os "anos de chumbo". "Os corpos chegavam em
sacos plásticos pretos amarrados com cordas. Ninguém desconfiava que estávamos
queimando pessoas. O movimento era disfarçado porque sempre haviam funcionários
alimentando os fornos com lenha. O odor forte do vinhoto mascarava o
cheiro", disse à imprensa, na época, o ex-delegado.
Cláudio Guerra, na mesma entrevista, defendeu a autocrítica das
Forças Armadas: "O que aconteceu é que erramos e agora temos que confessar
e pedir perdão à nação. Hoje, a ideia é outra, as forças armadas são outras, há
uma nova mentalidade, mas no passado houve o erro. Temos que confessar esses
erros e tentar mudar. A minha confissão de participação é para tentar ajudar a
esclarecer o que realmente aconteceu. Esta é uma história que precisa ser
passada a limpo. Por isso a minha confissão. Os outros envolvidos não se expõem
por temor a cadeia. Outras pessoas também podem ajudar a contar essa
história".
Mesmo na Comissão da Verdade, poucos seguiram a sugestão de
Claudio Guerra e quase ninguém fez mea-culpa. A começar pelo coronel Carlos
Alberto Brilhante Ustra, ídolo do presidente Jair Bolsonaro e o único condenado
por tortura praticada durante a ditadura. Muitos menos apareceram mais
torturadores confessos para jogar alguma luz sobre a história de outros
desaparecidos.
Com a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro, a autocrítica dos
torturadores ficou na poeira da estrada. O anti-comunismo e o discurso do ódio
passaram constituir tema dos novos mantras. O próprio candidato ameaçou
metralhar os adversários políticos – literalmente, os "petralhas" -,
o que animou os seus seguidores a espalhar o terror nas ruas ao longo da
campanha.
Eleito, a primeira ação de Bolsonaro foi reacender a briga
contra o desarmamento, o que fez baixando um decreto de flexibilização da
compra e venda de armas. Montou um governo militar, com um time de generais
que, em número, não encontra paralelo nem na própria ditadura. Estimulou –
pessoalmente e através dos três filhos que deitam e rolam no governo – o
recrudescimento do anticomunismo atrás de ministros indicados por figuras como
o "filósofo" de extrema-direita e astromante Olavo de Carvalho. Pôs o
Brasil em guerra ideológica.
Ao recomendar a comemoração, ou "rememoração", do
golpe militar de 1º de abril e a revisão histórica do que chama,
extemporaneamente, de a "revolução de 31 de Março", Bolsonaro não
coloca somente o País em confronto político. Ele põe o Brasil em perigo e a
nossa democracia em risco. Atiça os que sonham com o passado, com a tortura,
com as prisões políticas, com a guerra entre um lado e outro.
Bolsonaro, mais que isso, desrespeita a luta de centenas de
pais, mães, filhos, irmãos, parentes e amigos de desaparecidos políticos. Como
de famílias como a de Dona Zita Santa Cruz.
O que aconteceu no Brasil não deve acontecer mais. Até porque
muitas barbaridades e muitos crimes não foram esclarecidos. Nesse assunto, a
memória brasileira ainda veste luto.
(Por Gilvandro Filho)
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