23 fevereiro 2015

CRÔNICA DO DIA: A primavera dos cadáveres

Estar mortalmente doente é não poder morrer”
(E. M. Cioran)

O embate cresce na carne por dentro das unhas, longe da filosofia. É claro que caímos de duras quedas, e os holofotes não são mais os mesmos: desbotam a cor. A vontade de viver é diariamente compensada com presságios de fim de mundo, de fim dos homens. Mas nós permaneceremos, justamente porque foi dura a queda.

A conclusão patética: compartilhamos diariamente nossos neurônios com a terra que, em troca, não nos esclarece nada. Somos, em suma, desprezíveis, com a nossa interioridade revoltada, com nossos órgãos expostos, com nosso aspecto amoroso. Mas somente o que é desprezível pode ser santificado. E só um louco seria um santo. Acreditamos em pragas irreversíveis, carregamos flores entre os dentes. Estamos aqui, estamos em lugar nenhum. Somos o que é enquanto é apenas, e trata de ser pouco.

E não teremos empregos, ou teremos qualquer emprego: e não será por falta de habilidade prática, bem mais será porque a ocupação profunda (e ao mesmo tempo intangível) de nossos dias nada terá que ver com a progressão de um falso estado de conforto de uma profissão decente, passível de carreira e méritos. E isso poderia ser grandioso, talvez o seja para alguns ingênuos (e que sorte a deles!). Mas para nós é a confirmação tácita de uma patologia corrosível, do não-fazer devido à dúvida sobre a existência, quando giramos a seta das ações para um questionamento diverso de tudo: estou fazendo isso para chegar aonde? E o clichê do não-lugar se estabelece como um fardo, então nos escondemos em quartos escuros e compensamos nossa terrível situação de demência motivacional com divertimentos e rezas, e então nos tornamos bêbados ou santos, ou os dois.

Porque o que está oculto: é isso que nos amedronta, e quão ridícula pode ser uma existência sem asas enormes, da qual não colhemos senão as memórias sensíveis de fragmentos incoerentes, e não sabemos, a cada passo, se devemos dar o próximo, porque os passos contradizem-se com seu próprio mérito: não nos levam a lugar nenhum, e não seriam necessários, mas pensamos nisso com asco. E como a completude ilimitada da infância se tornou uma caixa de remorso dentro do esquecimento, atrasamos essa infância o quanto pudermos, e nos tornamos infantes terríveis, que são os adultos de coração frágil aprisionados no espanto, porque sabem que só há felicidade no espanto, e os adultos auto-afirmados são pessoas que já não se espantam com nada.

Pensando em para frente e para trás, andamos milênios para os lados. Pusemos abaixo os impérios e as crendices, e para o sangue gasto inutilmente demos o nome de justiça. Duro é saber que a justiça real precede os homens, que a um terremoto fulminante não se pode convencer com ideias. Pusemos no chão as paredes mais sólidas, as paredes que nos impediam de pronunciar nossos próprios nomes. Mas agora que temos nomes, não sabemos pronunciá-los.

(Trechos do escrito de Leonardo Marona)
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